Trocas de mensagens via WhatsApp entre ex-servidoras da Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre (Smed) indicam que possíveis irregularidades e direcionamentos de compras para grupos econômicos eram de conhecimento da cúpula da pasta.
Arquivos obtidos pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI), no contexto da aquisição de brinquedos e jogos pedagógicos da empresa Edulab Comércio de Produtos e Equipamentos, entre outubro e dezembro de 2022, apontam que o negócio teria sido concretizado por influência do representante comercial Ciríaco Pereira Freire Junior.
A compra feita pela Smed, a atuação de Ciríaco e a conduta das duas ex-servidoras estão entre os fatos investigados pela Operação Capa Dura, da Polícia Civil, que deflagrou sua segunda fase no início de julho.
As conversas foram extraídas do aparelho de telefone da ex-chefe de gabinete Camila Correa de Souza, em diálogos com a ex-assessora técnica da Smed Mabel Luiza Leal Vieira. Mandados judiciais foram cumpridos contra elas na primeira etapa da ofensiva policial, e os elementos colhidos embasaram a nova fase. No caso da Edulab, Mabel foi a responsável pela instrução do processo administrativo da compra. Os arquivos das conversas constam em relatórios da Polícia Civil, cuja tramitação está no Poder Judiciário.
A Edulab vendeu R$ 4,2 milhões à Smed em equipamentos da marca Brink Mobil. A investigação aponta que são empresas do mesmo grupo econômico, e que Ciríaco é representante de ambas.
“Eu matei toda charada dessa m**** de Brink Mobil. Tô com nojo dessa gente”, dizem mensagens de Mabel para Camila.
Em depoimento à Polícia Civil, Mabel afirmou que estava encaminhando a compra de equipamentos para praças das escolas municipais junto a uma empresa que não é investigada. Ciríaco, da Edulab, esteve em Porto Alegre no período para visitar a prefeitura e teria tomado conhecimento da negociação. A partir deste momento, conforme depoimento de Mabel, Ciríaco supostamente “desacreditou” a empresa concorrente com o discurso de que ela não cumpria prazos e deixava de entregar os equipamentos vendidos. Isso teria sido dito por Ciríaco em reuniões na prefeitura.
Até que, conforme narrado por Mabel, o ex-secretário-adjunto Mário de Lima teria voltado de uma reunião externa com a suposta ordem de “derrubar” a compra das praças da empresa concorrente. A determinação seria para fazer as aquisições de jogos e brinquedos da Edulab, sediada em Curitiba (PR). Ao final, foi isso que aconteceu. A concorrente teve o procedimento de compra, já em estágio avançado, cancelado. E a Edulab, representada por Ciríaco, concretizou a venda no intervalo de dois meses.
— Eu vou te dar o papo reto, tá. Aquilo que eu estava desconfiada é o que realmente aconteceu, tá. A pessoa esteve em Porto Alegre semana passada, conversou com os parça, tá. E fez a cabeça, entendeu? — diz áudio de Mabel enviado para Camila em outubro de 2022.
Em depoimento à Polícia Civil, Mabel afirma que a pessoa que teria conseguido “fazer a cabeça” na prefeitura era Ciríaco, da Edulab, com o objetivo de supostamente retirar o concorrente do páreo. Na sequência de mensagens, Mabel faz uma série de afirmações de descontentamento sobre o comportamento da ex-secretária da Educação Sônia da Rosa. As duas tinham proximidade pessoal, o que foi confirmado em depoimentos nas CPIs da Smed na Câmara de Vereadores, e atuavam juntas no gabinete.
“Eu falo pra Soninha. E ela só diz: toca o processo“, afirmou Mabel para Camila.
Depois, a ex-assessora menciona a empresa que teve a compra cancelada e afirma ter verificado que não havia nenhum histórico de atraso nas entregas. Teria sido, segundo Mabel, apenas uma narrativa para cancelar a negociação e abrir caminho para a Edulab.
“Isso foi mais um golpe”, disse Mabel.
Camila, então chefe de gabinete de Sônia, respondeu: “Sim. Tudo golpe.”
A ex-assessora ainda diz, nas mensagens, que Sônia “tá cega e vai se enterrar”.
A compra dos jogos e brinquedos junto à Edulab foi concretizada entre outubro e dezembro de 2022 por adesão à ata de registro de preço do Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Ambiental Sustentável do Norte de Minas (Codanorte). Conhecida como carona, a adesão é um mecanismo que permite aproveitar a licitação feita por outro órgão para efetivar compras públicas de forma mais rápida.
O processo administrativo da Edulab foi iniciado já com a ata de registro de preço que beneficiava a empresa. As regras do setor público determinam que os procedimentos sejam começados com a apresentação de uma demanda, seguida de estudos técnicos que, somente ao final, irão apontar as soluções possíveis, os métodos de aquisição e os possíveis fornecedores. Na Smed, a investigação aponta que o trâmite tinha vendedor escolhido desde a largada. A queima de etapas legais, o desperdício de materiais e o suposto direcionamento na Smed foram revelados em reportagens do GDI publicadas a partir de junho de 2023.
A suspeita apurada pela Polícia Civil, apontada também em relatórios de auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), é de falta de planejamento e estudo técnico para a compra da Edulab. Está sob investigação a suposta burla à licitação para favorecer a empresa.
Também é apontado em relatórios que a Smed não nomeou servidores públicos como responsáveis pela recepção e conferência dos materiais vendidos pela fornecedora, o que é um procedimento padrão e legal. O ateste de recebimento foi dado pela ex-secretária Sônia, pela ex-chefe de gabinete Camila e pela ex-secretária-adjunta Pedagógica Cláudia Gewehr Pinheiro no dia 30 de dezembro de 2022.
A partir da segunda fase da Operação Capa Dura, a ex-secretária Sônia passou a ser investigada por supostamente ter recebido vantagens indevidas de fornecedores da Smed. A apuração aponta que, como retribuição por compras de livros pedagógicos, uma empresa teria providenciado o pagamento de uma parcela do apartamento de Sônia em Porto Alegre.
Atempa segue atenta aos desdobramentos das investigações
A Atempa vem acompanhando as investigações sobre a corrupção na Smed desde o início das operações e seguirá atenta a todos os desdobramentos, cobrando que todos os envolvidos recebam a devida punição prevista em lei. É no mínimo inadmissível e lamentável que os responsáveis por garantir as estruturas adequadas para uma educação pública de qualidade, sigam saqueando os cofres públicos em detrimento de empresários e seus próprios bolsos. Os milhões gastos no esquema de corrupção da Smed resolveriam diversos problemas com os quais várias escolas convivem há anos, como a falta de estrutura.
Fonte: GZH