EJA: entre a pandemia e os ataques neoliberais, com quantas lutas se mantém esse direito?

Cátia Ramos; César Rolim; Marco Mello; Marcus Vianna

O contexto da pandemia revelou ainda mais a profunda desigualdade socioeconômica presente em nosso país. Uma sociedade marcada pela super-exploração do trabalho, pelo racismo estrutural, pelo machismo, pela violência contra povos indígenas, contra LGBTI+, pelo autoritarismo político e mais recentemente pela ameaça representada pelo avanço do neofascismo, do obscurantismo anti-ciência e do neoliberalismo com sua necropolítica. A partir disso, nós, trabalhadoras e trabalhadores da educação pública devemos atuar de maneira a problematizar essa realidade na prática pedagógica com as turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Esta tem uma longa trajetória em busca de afirmação em nosso país. Atualmente, parece ser desdenhada e a primeira sofrer cortes de recursos financeiros e de pessoal. O acesso à educação pública, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada está sendo restringido por muitos gestores públicos neoliberais em mais um ataque aos escassos direitos do povo trabalhador. Brasil afora nota-se um processo de desmonte e de desqualificação da EJA. Os insistentes ataques à EJA ocorrem porque ela incomoda, problematiza, insere as(os) deserdadas(os) na escola, oferecendo-lhes uma educação crítica e libertadora.

Em Porto Alegre, ocorre um permanente ataque aos direitos de quem trabalha e acessa a educação pública especialmente desde o início da gestão neoliberal de Marchezan Jr (PSDB) e Adriano Naves (Secretário da Educação – SMED) com seus apoiadores no Legislativo Municipal e em vários veículos de comunicação da cidade. As ações de ataque à EJA são numerosas desde então: Descumprimento da obrigatoriedade legal de chamada pública às potenciais alunas(os) da EJA; Descumprimento de todas as metas do Plano Municipal de Educação relativos à EJA;Tentativa de reduzir matrículas, com centralização no CMET e veto de matrículas nas escolas; Desmonte da rede de apoio na área da saúde e assistência social, sobretudo para estudantes em situação de extrema pobreza; Redução de turmas e de recursos humanos da EJA em todas as escolas; Inexistência de uma coordenação da política de EJA na SMED; Institucionalização da política de concessão de 10 horas para a maioria das escolas, dificultando o vínculo com estudantes, comunidades e participação em reuniões pedagógicas; Inexistência de uma política de formação; Tentativas de esvaziamento da oferta na rede e implementação da EJA em EAD via SESI e Escola Monteiro Lobato, assim como de compra de vagas em instituições privadas; Imposição de oferta de turmas de progressão/superaceleradas para “correção de fluxo” no diurno; Retirada progressiva da Guarda Municipal nas escolas, sendo que na EJA muitas escolas já estão sem nenhum apoio, agravando a situação de insegurança para todas(os) que às acessam.

Mais recentemente, a tentativa de introdução da EAD, travestida de ensino remoto, a partir da Plataforma Córtex (oferecida por uma empresa privada, imposta pela SMED, tendo o município a PROCEMPA) é mais uma ação de caráter excludente do governo Marchezan/Naves, e de alto impacto na EJA. A exclusão digital é uma realidade para a maioria de estudantes sem acesso a equipamentos e planos de internet. O chamado ensino remoto ou EAD precarizado não é acessível universalmente. Não sendo universal, não pode se tornar a política educacional. A plataforma Córtex, desse modo, amplia as desigualdades educacionais e pode significar uma redução significativa das matrículas na modalidade e o prenúncio de seu fechamento presencial. E, mais um agravante, as plataformas digitais, sob o controle dos gestores e do capital privado, tendem a se afirmar como aparelhos de controle burocrático, mas sobretudo político e pedagógico do trabalho de educadores. Neste sentido, pode reacender o movimento ultradireita Escola Sem Partido ou Escola com Mordaça.

Nossas(os) educandas(os) da EJA são da classe trabalhadora, que lutam cotidianamente pela sobrevivência, submetidas(os) ao desemprego, desalento, trabalhos informais, sazonais e precarizados marcados pelo estigma do fracasso de uma suposta incapacidade para o aprendizado, que é socialmente construída e introjetada pelos próprios sujeitos. No atual contexto: não recebem o auxílio emergencial, não têm pacote de dados de internet, não têm um celular com qualidade para se comunicar. Nessa crise algumas famílias precisaram vender móveis ou outro bem menor para se alimentar. São alvos preferenciais da violência estrutural dirigidas às comunidades periféricas: vítimas do racismo, do machismo, da lgbtfobia, da informalidade no trabalho, da exclusão digital, do domínio da lógica do tráfico, etc. É fundamental perceber essas realidades e fazer um diálogo político, epistemológico e cultural para assegurar o direito à vida e o direito à uma educação que desaliene e emancipe essas populações.

Um dos primeiros passos é reconhecer a potencial demanda na modalidade. O cotejamento entre a oferta e a demanda potencial da EJA no RS tem tido importante contribuição a partir das pesquisas com com dados concretos e oriundos do IBGE/Censo 2010. Em Porto Alegre, são 25.979 pessoas acima de 15 anos que não sabem ler e escrever. Para o Ensino Fundamental, em Porto Alegre, são mais de 298.156 pessoas que não completaram esta etapa da educação básica. Possivelmente esses números devem ter aumentado com a piora das condições de vida nas comunidades a partir das políticas neoliberais de cortes de investimentos nos serviços públicos.

Pensar em um antídoto para a sobrevivência da EJA é rememorar tudo que até hoje enfrentamos como trabalhadores em Educação e estudantes da Modalidade da EJA. São trinta anos de política de EJA na cidade de Porto Alegre e em cada gestão municipal a insegurança da manutenção desta política se fez presente. A cada novo grupo que se constituía na SMED, nós, estudantes e educadores da EJA, tínhamos que nos apresentar e explanar quem éramos, como trabalhamos, o que queremos. Essa prática se tornou cotidiana em todos os espaços para todos os sujeitos da EJA. E, muitas vezes precisamos nos utilizar dessa forma de resistência, nas nossas próprias escolas, pois educadores, equipes diretivas e educandas(os) do diurno também padecem do desconhecimento de nosso direito à existência e necessidade social. Na atual conjuntura, não é diferente, com a pandemia da COVID-19, estamos ainda mais distantes e invisíveis para a gestão da educação em Porto Alegre. A sobrevivência da EJA está vinculada às mobilizações de educadores e de estudantes que persistem em “sobreviver” ao sistema social excludente. No decorrer destes anos trocaram-se educadores, estudantes, sujeitos. Porém, a força ao pertencimento continua e continuará, podemos diminuir em número de matrículas e trabalhadores em educação, mas a força não se esgotou. Permanece sempre a busca pela dignidade e cidadania que passa pelo direito ao acesso à educação pública de qualidade. Logo, o antídoto é o mesmo de ontem, o de hoje e o de amanhã, a força social de pertencimento. São jovens, adultas(os), idosas(os), portadores de necessidades educativas especiais, são e fazem parte desta sociedade, mesmo que tentem ocultá-las(os). E nós, como educadores da EJA, aprendemos com elas e eles e continuaremos, com essa teimosia esperançosa, fazendo a EJA persistir. Não esqueçamos: os governos passam, mas a força de pertencimento social continua!

A todas(os) nós que trabalhamos com educação pública não há dúvida de que precisamos nos somar às frentes para fortalecer a luta contra o neofascismo neoliberal. É preciso, portanto, dar a visibilidade e afirmar a EJA como um Direito Humano Fundamental. E não resta dúvida de que a EJA pública continua a existir em Porto Alegre porque há a docência militante, porque existe resistência nas comunidades escolares, de educadores, lideranças comunitárias, Conselheiras(os) tutelares, operadoras(es) do Direito e parlamentares que lutam pela conquista e extensão de serviços públicos.

A partir disso, surgem alguns compromissos importantes: Viabilizar o debate e a construção de instrumentos para construção do Currículo Emergencial, assegurando as especificidades da EJA; Realização de diagnóstico participativo da situação da EJA nas escolas, com a verificação da demanda local e número de vagas para as novas matrículas; Divulgar e assegurar a realização de matrículas para a EJA, com divulgação nas comunidades e ações junto aos movimentos comunitários das regiões da cidade; Campanha pública em defesa da EJA, com carro de som nas comunidades, material divulgação, depoimentos de estudantes da rede, educadores, pesquisadores da área – em defesa da EJA e das vidas; Reafirmar a EJA na sua concepção de Educação Popular crítica e transformadora; Enviar ofício à SMED solicitando reuniões específicas com as(os) coordenadoras(es) pedagógicos da EJA; Acionar o Ministério Público, Conselho de Direitos para a garantia da chamada pública e busca ativa de alunas(os) por parte da SMED; Rearticular a comissão da EJA na ATEMPA e, sempre que necessário, mobilizar o Conselho de Representantes – CR da EJA; Participar ativamente no debate programático para a gestão pública do próximo período, com as eleições municipais, para assegurar o compromisso de manutenção e ampliação da EJA.

Sabemos que a ATEMPA, desde há muito vem lutando em todas as frentes para a defesa da EJA e da educação pública, gratuita, democrática, popular e de qualidade socialmente referenciada. Foram muitas as batalhas e estamos preparadas(os) para mais essa que se inicia, pois uma das raízes mais generosas e fecundas na EJA, é a de sua origem que nasce de um compromisso político com a emancipação das classes populares, balizado pelo referencial da Educação Popular crítica e contra hegemônica. É com essa origem que precisamos nos reconectar e nos situar para recuperar e reconstruir nossa identidade, tão dilacerada nos últimos anos, para a continuidade da luta fundamental: defesa irrestrita da educação pública gratuita, para todas(os), libertadora, de qualidade e socialmente referenciada.