Nossas 99 escolas da rede municipal de ensino estão, em sua maioria, localizadas na periferia de Porto Alegre, onde encontramos as mais variadas vulnerabilidades sociais e econômicas. Atendemos em torno de 50 mil alunas e alunos de todos os níveis e modalidades de ensino, distribuídos entre Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação Profissional de Nível Técnico, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e Educação Especial. Em todos esses segmentos, nosso público é formado majoritariamente por pessoas que vivem com rendas baixíssimas, advindas de trabalhos autônomos ou com poucas seguranças trabalhistas e com auxílios governamentais (Bolsa Família, BPC, entre outros). Para agravar a situação, a maioria das famílias é numerosa e vive em moradias pequenas, com estruturas simples ou precárias que, além disso, experienciam várias formas de violência decorrentes das suas situações econômicas e que, ao recorrerem ao Estado, deparam-se com a insuficiência e precarização dos órgãos de assistência social. São moradores/as de bairros distantes da área central da cidade, o que dificulta a locomoção ao trabalho, assim como as condições sanitárias básicas, devido ao precário sistema de abastecimento de água e de saneamento básico.
Nesse cenário, a EaD, sendo considerada uma modalidade de ensino, com metodologia, estratégias para alcançar algum objetivo educacional, utilizando-se de recursos tecnológicos de informação e comunicação para ser viabilizada, torna-se praticamente inviável na educação pública municipal, e ainda representa uma precarização do ensino oferecido a essas pessoas. A maioria dos/as alunos/as não têm acesso a condições básicas de vida, quanto mais a recursos tecnológicos. A EaD representa a mercantilização da educação, a não valorização da relação pessoal, da sociabilidade, da aprendizagem na e pela convivência que somente a educação presencial proporciona. Defendemos a educação pública, democrática, laica, de qualidade, presencial e inclusiva. Consideramos importante manter o vínculo com o/a aluno/a, com a comunidade escolar, e vamos lutar sempre para que nenhum/a estudante fique sem acesso ao conhecimento por não ter o acesso à internet e outros recursos tecnológicos indispensáveis, tais como um computador e um celular.
Cabe refletirmos: Qual é o contexto que estamos vivenciando em escala global ? Qual é o contexto que enfrentamos em termos que vão muito além da pandemia ? A EaD garante, de fato, a manutenção da aprendizagem no contexto das comunidades que atendemos ? Nos diversos veículos de informação, presenciamos um aumento de casos de contaminação e de mortes pelo Covid-19. É nesse contexto calamitoso, de excepcionalidade e de agravamento ainda mais expressivo da vulnerabilidade social que afeta nossos alunos, que estamos vivendo. Isto, de fato, influencia no cotidiano de nossos/as alunos/as. Muitos/as deles estão preservando-se do vírus em moradias precárias, com famílias em busca da sobrevivência e, também, famílias que não tem condições de dar suporte às suas necessidades educacionais. Quando discutimos a EaD e a continuidade das atividades pedagógicas, precisamos considerar esse contexto. A EaD não é, e não pode ser uma realidade para a rede de ensino do município de Porto Alegre. Talvez possamos dizer que, EaD nos contextos em que atuamos, não se trata de educação. Educação, sabemos, não é algo que podemos fazer à distância, de forma precária e improvisada, com professores/as e alunos/as sem acesso a formação e recursos adequados, sobretudo no ensino fundamental e nas condições descritas. Assim, precisamos refletir seriamente sobre em qual contexto estamos construindo a escola, a educação e as atividades que, neste momento, são bem vindas, pois estão focadas principalmente no vínculo e no estímulo remotos, sem que uma plataforma EaD se imponha.
Estamos vivenciando uma situação de excepcionalidade, na qual a prioridade deve ser a vida. Buscamos, neste momento, manter algum tipo de contato ou vínculo com nossos/as alunos/as através de atividades remotas que proporcionam momentos de escritas, leituras, realização de exercícios, ludicidade, até mesmo reflexões, mas sabemos que é na relação professor-aluno, presencial, que se dão a construção do conhecimento, a aprendizagem. É através das relações interpessoais, da troca imediata de falas, olhares, percepções, que se constitui a educação, se potencializa a arte de pensar, se constroem concepções, são selecionadas informações, se estimula a observação, a formulação de hipóteses, se desenvolvem aspectos afetivos e solidários, se contribui para um pensamento crítico, sobretudo no ensino fundamental, que predomina na rede municipal de POA. A educação é um importante instrumento de inclusão social e de transformação desta sociedade tão atingida pelos altos índices de desemprego, exploração, segregação. Por isso as atividades que se mostram apenas conteudistas ou televisivas, em que a tarefa de ajudar na realização das mesmas é delegada a um único responsável (quando há supervisão de um responsável), em que o/a aluno/a as realiza de forma solitária, sem a interação com um/a professor/a, com colegas, não dão suficiente suporte para nossos alunos.
A SMED não se pronuncia oficialmente sobre como os/as professores/as da rede devem proceder mas, via redes sociais, fomenta a ideia de que as atividades são de responsabilidade da escola, e colocam como preocupação central um processo de aprendizagem que se resume a cumprir o calendário letivo. Mas a educação que deve ser priorizada é aquela pensada tendo em vista as particularidades das comunidades escolares. A EaD no ensino fundamental não só não dá conta de garantir a aprendizagem, como garante o distanciamento das vidas, a perda das necessárias relações e trocas. Não podemos nos igualar aos governos nefastos, que há anos nos impõem perdas na qualidade do ensino e fragilizam nossa saúde física e mental. A SMED, ao se omitir dos debates sobre como procedermos neste momento, enquanto mantenedora, delegou à rede de professores a tarefa de pensar e agir tentando garantir o mínimo de estímulo e vínculo. Estamos empenhados nisso e, através desta experiência, mais do que nunca, estamos cientes de que nossa valorosa rede municipal de cerca de 4 mil professores/as e 900 funcionários/as não deve permitir que a EaD se estabeleça enquanto paradigma educacional. A EaD é um sistema excludente, e nossa luta é pela inclusão social através de uma educação pública e universalizante. Somos muitos/as e precisamos construir, neste momento tão difícil, outras formas de relações com nossos/as alunos/as, a fim de, coletivamente, encontrarmos um processo que não produza mais desigualdades.
A situação é difícil, porém precisamos responder de forma coletiva e não de formas fragmentadas, isoladas e improvisadas. Precisamos perguntar: Os/as alunos/as estariam em condições de aprender, usufruir da escola se a EaD fosse o paradigma educacional adotado? Que função cumprem as tarefas que estamos enviando? Precisamos nos questionar. Não podemos aceitar o aumento da desigualdade, principalmente no que tange aos meios através dos quais as atividades chegam até nossos/as alunos/as. Nossos/as alunos/as não podem ficar à margem dos processos educacionais enfrentando, também através destes, o agravamento da exclusão que os vitimiza. Apesar da nossa rede trabalhar fundamentada na filosofia e práticas da educação popular, temos um grande número de evasão escolar de alunos/as que não se sentem acolhidos/as num sistema educacional que apresenta inúmeros desafios no sentido da inclusão e da universalização, ainda que nos esforcemos para acolher e oportunizar o desenvolvimento de habilidades significativas de todas e todos. A experiência atual evidencia que uma plataforma EaD ampliaria os índices de evasão.
Dessa forma, não podemos aceitar o aumento da distância entre nossos/as alunos/as. Através da EaD reforçaríamos a dura realidade que impõe o pertencimento à escola para aqueles que têm mais recursos, mais autonomia ou mais apoio familiar, em detrimento dos que não tem o mesmo suporte. É este o nosso objetivo ? Reforçaremos que o sucesso educacional é mero fruto do próprio esforço, da dedicação do/a aluno/a, em uma lógica meritocrática? Permitiremos que os abismos aumentem, assim como as estigmatizações e as perversas diferenças?
Se já enfrentávamos problemas antes da pandemia, como pensar nosso trabalho sem aumentar nossos problemas ? Precisamos escutar nossos/as alunos/as, suas aflições sobre este momento tão trágico para a humanidade. Os familiares e a estrutura EAD, que não pode ser confundida com o que estamos fazendo, não substituem os professores/as e as relações estabelecidas com as comunidades atendidas pelas escolas. Nosso trabalho exige especialização, preparo, tempo, conhecimento, afetividade, vínculo. Lidar com este momento de pandemia está exigindo de todos nós a reinvenção de nossas práticas, a fim de que consigamos atravessar este período fortalecidos e priorizando a vida. O papel da educação deve ser apoiar as comunidades que estão à margem das políticas governamentais atuais, recusando toda a forma de retirada de direitos. E o direito em questão aqui é o acesso irrestrito à educação.