Denúncia: Áudios de Sebastião Melo indicam que ele intercedeu em favor de empresa que venceu licitação da Smed, veja a reportagem do Matinal

Por Gregório Mascarenhas/Matinal

Em 2020, ainda no governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), a plataforma educacional Córtex foi doada à prefeitura de Porto Alegre, sem custos, pelos empresários Jorge Gerdau Johannpeter e Klaus Gerdau Johannpeter. Dois anos depois, a prefeitura abriu um processo licitatório para contratar um software de gestão escolar que desempenharia esse mesmo papel. Áudios aos quais a Matinal teve acesso indicam que o prefeito Sebastião Melo (MDB) interveio diretamente na relação da empresa com o município. Nas mensagens, ele cita a plataforma nominalmente, assim como o diretor da empresa que desenvolveu o sistema e o empresário que teria sido “padrinho” do processo.

A empresa CRTX, desenvolvedora da Córtex (também conhecida como Eduspace), venceria o edital, em um processo conduzido pela então secretária municipal de Educação, Sônia da Rosa, e já custou mais de R$ 3 milhões aos cofres municipais. Na sexta-feira passada, a reportagem revelou outro áudio enviado em um grupo de WhatsApp no qual o prefeito afirma que tinha a palavra final sobre decisões da Secretaria Municipal da Educação (SMED).

Em junho de 2020, o investimento, custeado pelos doadores, era de R$ 1,23 ao mês por aluno. Quando a prefeitura contratou a CRTX, o custo mensal por estudante passou a ser de R$ 2,59 – mais do que o dobro. Se o primeiro valor fosse apenas corrigido pela inflação, com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o número se elevaria para R$ 1,48 em agosto de 2022, mês da contratação. 

Três meses antes da abertura oficial da concorrência que definiria o uso do software da CRTX, Melo intercedeu pela continuidade do uso do software da empresa Eduspace, segundo indica uma das mensagens às quais a reportagem teve acesso. Em 8 de fevereiro, o prefeito enviou um áudio a um grupo de WhatsApp com membros da Smed e de outras instâncias da prefeitura, cobrando a então secretária de Educação Janaína Audino – que viria a deixar a pasta no mesmo mês – e pedindo agilidade nos trâmites com a empresa desenvolvedora.

Tratava-se de um chat chamado “FT Educação”, composto por 25 pessoas. Entre elas estava a servidora Claudia Gewehr Pinheiro, ex secretária-adjunta pedagógica da Secretaria Municipal de Educação (Smed), que viria a compor a comissão especial avaliadora e julgadora que definiria o software a ser utilizado. Ela chegou a prestar depoimento às Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) que apuraram possíveis irregularidades na Smed na compra de materiais pedagógicos e é uma das investigadas pela Polícia Civil na Operação Capa Dura.

“Eu volto à tona com a ferramenta Córtex. O doutor Gerdau (referindo-se ao empresário Jorge Gerdau Johannpeter) tem audiência comigo amanhã às 11h da manhã, esse assunto foi tratado com ele em dezembro, os documentos do Richard (Richard Lucht, sócio-fundador e CEO da CRTX, empresa que fornece o software) chegaram no meio do mês de fevereiro, janeiro, e nós estamos hoje no dia 7, 8 de fevereiro, e o assunto não andou. Então eu quero a instrução do processo até amanhã. Se, secretária, a senhora não puder fazer, a senhora delega. Tá? A senhora delega porque eu quero amanhã esse processo na minha mesa às 11h, tá bem? Saúde e paz”.

A “instrução do processo”, termo utilizado por Melo, refere-se normalmente à etapa inicial de organização e preparo dos documentos, informações e atos necessários para dar início a uma licitação. Essa fase antecede a publicação do edital.

Audino respondeu em texto, no grupo, 14 minutos depois do áudio de Melo:

“Prefeito, a Smed analisou todos os documentos e estamos escrevendo a justificativa. Para amanhã, o senhor pode garantir a continuidade da plataforma na rede municipal de ensino. Estamos renovando sem ônus até o final de março. O Richard encaminhou os documentos, e o termo está tramitando para assinarmos. Está tudo sendo encaminhado. Qualquer dúvida estou à disposição”.

Em 9 de fevereiro de 2022, dia em que aconteceria o encontro entre Melo e Jorge Gerdau, de acordo com o áudio do prefeito, a reunião não consta na agenda oficial do poder executivo. 

Demitida, Audino deixou o cargo 13 dias após o áudio. No começo de março de 2022, Sônia da Rosa assumiu a secretaria. Ela é quem abre, dois meses depois, o processo licitatório para selecionar a “solução inovadora” para gestão nas escolas. Ao abrir o processo de licitação, a nova secretária nomeou o arquivo com o nome “Córtex”, conforme a imagem do programa eletrônico utilizado pela administração municipal à qual a reportagem teve acesso. Ou seja, Sônia da Rosa colocou no arquivo o nome de uma das plataformas que, naquele momento, era uma das concorrentes da licitação, mas que acabaria vencendo a disputa.

Secretária da Smed nomeou como “Córtex” o arquivo da licitação no sistema eletrônico da prefeitura quando a plataforma era uma das concorrentes da licitação

Um mês depois de aberta a licitação, em um

áudio enviado a outro grupo com integrantes da Smed, conforme mostrou outra reportagem da Matinal, Melo demonstra estar preocupado com o fato de a prefeitura não ter aplicado, na educação, o percentual mínimo de 25% da receita obtida com impostos em 2020 e 2021, conforme previsto na Constituição. No áudio revelado no dia 29 de novembro, o prefeito diz: “Não podemos aprovar a Emenda 13, o prefeito de Porto Alegre está vivendo em Brasília para fazer isso, e nós chegarmos no final do ano e não gastar os 27 ou 28%. Gastar o que temos que gastar, os 25%, e mais 88 milhões. Agora: não posso estar brigando que um servidor não podia, que isso, que aquilo. Eu quero dizer o seguinte: a ordem do prefeito, em letras garrafais, é para acontecer. Ponto. É para acontecer. E quem estiver desalinhado está desalinhado com o governo, tá?”. A Emenda 13 à qual ele se refere é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 13/2021, que era discutida no Congresso Nacional naquele momento. A proposta isentaria gestores públicos de responsabilidade pela não aplicação de percentuais mínimos nos anos pandêmicos.

Escolha contestada 

O edital foi publicado no dia 27 de maio, ainda sem definição do grupo de funcionários que conduziria a licitação. Esses nomes saíram no Diário Oficial do Município somente um mês depois, em 27 de junho, reduzindo o tempo de possíveis pedidos de impugnação.

O que é a plataforma Córtex

  • É um sistema digital para gestão escolar, no qual constam informações dedicadas às escolas, às famílias dos alunos e à própria rede municipal de educação, em dados como frequência, planos de ensino e matrículas. Esse monitoramento pode ser preenchido em tempo real por docentes e diretores, oferecendo também possibilidade de comunicação com outros atores da rede.

Além de Claudia Gewehr Pinheiro, a também a pedagoga e assessora técnica da Smed Maria Cláudia Bombassaro Callegari participaria da comissão, junto ao diretor de Transparência da Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria, Alexsandro dos Santos Machado.

Maria Cláudia foi diretora pedagógica da Smed durante o governo de Nelson Marchezan Jr., quando a plataforma Córtex foi implementada no município. Alexsandro faz parte do Instituto Palavrações, que presta assessoria à Smed desde agosto de 2022.

A sessão pública da concorrência aconteceria em 7 de julho. Três dias antes, porém, foi publicada uma portaria no Diário Oficial, incluindo o professor Rômulo Calado Pantaleão Câmara, doutor em Ciência da Computação na Universidade Federal da Paraíba, para o lugar de Alexsandro na comissão julgadora. Não foi incluída justificativa para a mudança em um dos membros da comissão. Além da CRTX, outras cinco empresas – a SQED Tecnologia da Informação, a Didátkos Educação e Tecnologia, a EAD Master Serviços Educacionais e Tecnológicos, a MSTECH Tecnologia Inova Simples e a Educare Digital – enviaram documentação.

Dessas, a MSTECH foi desclassificada. A SQEDS, a EAD Master e a Didatikos foram eliminadas, e a Educare Digital ficou em segundo lugar. Das seis participantes, três enviaram recursos para a concorrência pública.

A MSTECH foi uma delas. A empresa alegou que a prefeitura não justificou a escolha dos  três nomes que compuseram a comissão julgadora: “(…)não foi destacado qualquer deles com competência profissional para analisar uma empresa, sob o ponto de vista jurídico e societário”. 

A Educare Digital, por sua vez, pediu reconsideração em três notas dadas pela comissão. Em um critério chamado “grau de maturidade da solução proposta”, em que teve conceito inferior ao dado à CRTX, argumentou que teria abrangência de implementação sete vezes maior do que a vencedora, a CRTX. A empresa também ressaltou os custos de cada software: enquanto o dela seria de 1,180 milhão anuais, a plataforma Córtex teve valor inicial de 1,554 milhão no mesmo período.

Todos os recursos foram indeferidos pela mesma banca que avaliou as propostas.

Melo diz que Jorge Gerdau Johannpeter é “padrinho” do processo

Em 26 de julho, a CRTX foi declarada vencedora da licitação. Em 18 de agosto, o Centro Administrativo Municipal sediou uma cerimônia de assinatura de contrato. Estavam presentes o CEO da plataforma, Richard Lucht, a secretária Sônia da Rosa, o prefeito Sebastião Melo e o empresário Jorge Gerdau Johannpeter, entre outras pessoas.

Em outro áudio ao qual a Matinal teve acesso, Melo foi enfático sobre a presença de Gerdau, a quem define como “padrinho desse processo”:

“Sônia, é importante ‘reavisar’ o Dr. Gerdau, ele estava com a data errada, fala com o Richard, ele não pode faltar à assinatura, ele é o padrinho desse processo, tá?”. Sônia da Rosa, Jorge Gerdau Johannpeter e Richard Lucht fazem parte do conselho do grupo Pacto pela Educação, um “movimento colaborativo que tem como objetivo transformar a educação do Rio Grande do Sul e tornar o estado referência na área”, segundo o site institucional.

Desde a contratação, a administração pública municipal despendeu R$ 3.216.250,40 com a CRTX. A vigência do contrato foi prorrogada, em agosto de 2023, quando completou um ano, até agosto de 2024. Até a presente data não houve qualquer publicação nos órgãos oficiais da prefeitura sobre um novo aditivo. 

A reportagem verificou, no entanto, que escolas da rede porto-alegrense seguem utilizando a plataforma normalmente. A prefeitura realizou também um novo pagamento à empresa em 19 de setembro, na ordem de R$ 93,8 mil. 

O contrato teve três fiscais na prefeitura: Mabel Luiza Leal Vieira, Melissa de Oliveira Machado e Paulo Werlang de Oliveira. Mabel chegou a ser presa preventivamente pela Polícia Civil, no âmbito da Operação Capa Dura, que investiga as compras com dispensa de licitação. Mais recentemente, em abril deste ano, a atribuição de fiscalizar o contrato foi passada para uma nova titular, a servidora Aline Rocha Mendes.  

Pouco depois da assinatura do contrato, o Ministério Público de Contas (MPC) solicitou ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) uma análise do contrato, para verificar possíveis irregularidades na definição de preços e os critérios para a seleção da Córtex. A representação do TCE foi aberta no dia 14 de setembro de 2022, mas há atualmente um recurso de embargos. 

A reportagem buscou contatos com a coordenação de comunicação social da prefeitura e com a Smed, mas os órgãos não responderam até o fechamento desta reportagem. Tampouco a EduSpace respondeu à Matinal.