No dia 30 de agosto, o Prefeito Municipal de Porto Alegre publicou o Decreto nº 19.826 que dispõe sobre a presença do Executivo Municipal nos bairros de Porto Alegre, aos sábados, no projeto denominado “Prefeitura nos Bairros”.
O decreto recebeu inúmeras críticas de servidores por outorgar ao prefeito o poder de coibir manifestações públicas contra sua gestão. Para mim, o decreto é uma reação à convocatória feita pelo Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa) para utilização dos espaços do projeto como palco de reivindicação, como mostra o jornalista Marco Weissheimer em sua coluna de 3 de setembro no jornal Sul21. Ali, o jornalista afirmou que o Prefeito não quer protestos nas áreas em que ele estiver com o projeto Prefeitura nos Bairros e destacou o seguinte: “um grupo de conselheiros tutelares relatou, em um texto divulgado em redes sociais, que, no dia 30 de agosto, Marchezan teria solicitado, em uma reunião com o Conselho Tutelar da 4a. Região, do bairro Partenon, e da microrregião 10 do bairro Leopoldina, que, quando ele estiver visitando algum bairro dentro do referido programa, eles não permitissem que crianças levassem cartazes de protesto, solicitando moradia ou algum outro tipo de reivindicação.” Essa posição provoca o debate importante sobre o poder e o limite da Prefeitura na ocupação do espaço público.
O Prefeito está incomodado com o fato de até crianças estarem criticando sua gestão, passando por cima do fato de que até o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 16, item V, garante a crianças e jovens participação da vida politica, direito inalienável à liberdade da criança que a redefinição do uso do espaço público visa retirar. Quer dizer, o decreto não está isento de contradições, inclusive com outros dispositivos legais, e urge a análise e interpretação dos significados da lei e das ações promovidas pelo Projeto Prefeitura nos Bairros para revelar os interesses revelados ou ocultos na sua realização quando confrontados com a concepção do que é o espaço público. As duas perguntas deste ensaio são : tem o senhor prefeito o direito através de seu decreto de excluir manifestações públicas no espaço de seu projeto? Que tipo de concepção de espaço público, arena politica e prestação de serviços públicos estão contidos no decreto 19.826?
Que serviços são esses?
Composto por 6 artigos, o Art. 1º do decreto 19.826 define o projeto Prefeitura nos Bairros como a “disponibilização a população de serviços públicos nos bairros e regiões de Porto Alegre, desenvolvida pelos agentes e servidores públicos”. O parágrafo primeiro faculta a adesão de demais entes públicos e a primeira questão relativa ao dispositivo legal é o questionamento sobre a definição dos serviços oferecidos. Na justificativa do Decreto, o Prefeito define o Projeto como “prestação de serviços públicos itinerantes”. Eles são voltados para “a valorização da cidadania, da cultura, da educação e da solidariedade, bem como para o desenvolvimento de hábitos de higiene, limpeza, preservação do meio ambiente e da saúde, prevenção e combate de doenças, mediante a realização de exames médicos e laboratoriais, vacinação, entre outras medidas e encaminhamentos”.
Os serviços são especificados no documento anexo ao decreto. São 46 ações promovidas por cerca de 20 órgãos, incluindo-se órgãos estaduais. No campo da saúde, um dos maiores do projeto, são especificados a realização de testes diversos e consultas de enfermagem, como análises de glicemia e orientação de saúde bucal, realizados no interior de um ônibus com espaço para realização de testes rápidos para doenças sexualmente transmissíveis e outros exames de caráter local. Há também ações educativas da guarda municipal, emissão de documentos como certidão de nascimento e carteiras do trabalho, prestação de informações de diversos órgãos públicos através da entrega de folderes e folhetos de informações, além de espaços para realização de atividades desportivas. Há também serviços de atendimento do Procon e SMIC, como a emissão de alvarás, entrega de segundas vias de tributos municipais, e na área cultural, rodas de leituras, entre outras atividades.
Minha pergunta é? Exatamente o que estão fazendo as pessoas ali naquela praça? A primeira imagem que vem a mente é a do capítulo Disney world Company, da obra Tela Total do filósofo Jean Baudrillard (Editora Sulina,1997). Ali o autor lembra que no começo dos anos 80, quando a metalúrgica Lorena estava em crise, o poder público teve a ideia de atenuar seu desabamento criando um parque europeu de lazer, destinado a dar fôlego a região. Chamado de Schtroumpfland, ali, o diretor da siderurgia defunta se tornou seu diretor e os metalúrgicos desempregados foram recontratados, mas o parque terminou por fechar as portas. Baudrillard cita o exemplo para introduzir sua descrição do universo da Disney, um mundo capaz de criar parques temáticos em diversas cidades do mundo, como Orlando e a Eurodisney e que gerou similares por todo o mundo “hoje, a Disney poderia muito bem retomar a guerra do Golfo como atração mundial”, diz ironicamente o filósofo.
Para mim é exatamente assim que funciona no campo imaginário o projeto Prefeitura nos Bairros: essa prestação de serviços públicos não é a disneylândia da administração pública justamente na época em que a Prefeitura diz estar atravessando sua maior crise e, de certa forma, não busca, como a iniciativa da siderurgia citada, dar um fôlego a mais a administração? E o Prefeito, como aquele diretor, não exige ser garoto propaganda, com sua participação direta e espetacular, sempre com cenas para reproduzir nas redes sociais? E os servidores, com seus salários parcelados, não são a ante-sala dos metalúrgicos desempregados de Schtroumpfland? Ora, a descrição dos serviços mostra o plano em que atua o projeto: o plano da simulação dos serviços públicos. Porquê? Porque para mim os serviços parecem política pública mas não são. O que é uma política pública? Leonardo Secchi em Políticas Públicas (Cengange, 2011) afirma que políticas públicas são diretrizes para enfrentar problemas públicos, “é o tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente relevante”(p.2). Ora, as ações propostas pelo projeto Prefeitura nos Bairros são apenas operacionais – o cidadão tira uma carteira de trabalho, mas ele não consegue o…trabalho – etc. Onde estão as diretrizes estruturantes da política municipal ou as diretrizes de políticas intermediárias? Qual é o verdadeiro problema? O trabalhador não ter uma carteira do trabalho ou não ter…trabalho?
São serviços importantes? É claro que sim. Transformam radicalmente os problemas dos cidadãos? Minha resposta é não. Para mim são a expressão local do populismo, oferta de serviços para as massas cujo modelo é o do…parque temático! Ali, serviços públicos são “oferecidos” a população como se fossem atrações de um parque de diversões qualquer, querem ser apresentadas como políticas públicas da prefeitura mas são em realidade falsas políticas públicas pois os problemas vitais não são resolvidos. O DMAE está ali para resolver o problema do cano do esgoto do local? Não, está ali para dar a segunda via da conta de água. A SMS está ali para oferecer tratamento continuado para uma doença crônica do cidadão? Não, está ali para fazer um exame com uma gota de sangue. Assim, sucessivamente, uma a uma, vê-se ações limitadas, um grande conjunto delas, é verdade, que tem a aparência de um shopping center de serviços públicos a céu aberto, onde a presença da Prefeitura é mais o atestado de falência de suas políticas públicas, eis a questão. Temo o pior: essa é a politica pública desejada inconscientemente pelo neoliberalismo, é a sua visão de futuro de como devem ser atendida a população mais pobre exatamente porque é muito mais barata, e o que é muito pior, é isso que irá sobrar de política pública em nosso país quando este projeto geral tiver sido realizado plenamente o seu objetivo: aniquilar todo o serviço público. Não é exatamente isso que propõe agora governos neoliberais por todo o país, a começar pela recente proposta de extinção da UERJ e a demissão de seus funcionários?
Esse parque temático de serviços públicos só existe porque somos, no fundo, no fundo, primitivos como os índios. Em outra obra, A Sociedade do Consumo (Lisboa, Edições 70), Baudrillard nos fala do estatuto miraculoso do consumo. Ele cita os indígenas da Melanésia que, maravilhados com os aviões que passavam no céu mas que nunca desciam até eles, resolveram construir um simulacro de avião e uma pista para eles pousarem. Esse exemplo serve para Baudrillard introduzir a ideia do pensamento mágico como governante do consumo, mentalidade sensível ao miraculoso na vida cotidiana. Ora, para mim os serviços públicos oferecidos pelo projeto, suas breves satisfações imediatas, estão mais próximas do avião simulacro daqueles melanésios do que de políticas públicas propriamente ditas. É que, da mesma forma que o consumo é vivido, não como processo de produção em nossa sociedade, mas como um milagre no sentido dado por Marx, de nosso desconhecimento do processo de produção, as ações do projeto Prefeitura nos Bairros são vividas também como o …milagre da política pública!.”Nossa, quanta coisa” – dizem os moradores. Claro! Para o cidadão que não tem acesso a nada, é muita coisa, mas o problema é exatamente esse, de que também a Prefeitura é responsável por essa exclusão: entre o cidadão que vai ao projeto Prefeitura nos Bairros e o indígena melanésio há profundas diferenças mas não é notável que a mesma economia psíquica esteja em funcionamento, de que as ações são vistas como o milagre dos serviços públicos que a Prefeitura possa realizar? Ora, há um longo caminho entre o projeto Prefeitura nos Bairros e a construção de políticas públicas, um longo processo que não se resume a ações das 10 às 16 horas em uma praça em um único dia da semana.
Quem organiza as atividades nos bairros?
O artigo segundo do decreto 19.826 estabelece a Secretaria Municipal de Cultura como órgão organizador cuja função é: “especificar[á] e divulgar[á] os serviços a serem prestados em cada evento conforme as peculiaridades do local e da população destinatária”. Olhando o anexo do decreto, observa-se que as atividades são ações realizadas pelas próprias secretarias, resumo de sua face mais concreta para consumo ligeiro. Até aí, tudo bem, afinal trata-se de mostrar um pouco da administração pública, mas… porque a Secretaria da Cultura as organiza?
Luciano Alabarse, célebre diretor de teatro de Porto Alegre, secretário de Cultura, é conhecido pela sua capacidade pro-ativa. Criador do projeto Porto Alegre em Cena, tem experiência em trabalhar com grandes equipes, recursos e gerir grandes números. É, de longe, o secretário com quem o Prefeito pode contar para um evento de porte como o Prefeitura nos Bairros. Mas uma atividade desse tipo teria sido organizada em governos anteriores pela secretaria de governança. Porquê a Cultura?
Arrisco a sugerir que existe um motivo secreto para isso: a ideia de que, mais do que um projeto de prestação de serviços públicos, trata-se de um espetáculo da administração. Imagino o Prefeito se perguntando quem seria o mais hábil em dirigir um espetáculo para logo responder… Luciano Alabarse!.Minha hipótese é que o projeto Prefeitura nos Bairros não vem para realizar politicas públicas – é fraco demais, é pobre demais para isso – é, antes, um projeto para reforçar a ideologia de que Prefeito se preocupa com os pobres quando para mim, sua preocupação é com as classes dominantes. O projeto Prefeitura nos Bairros é o espetáculo oferecido aos pobres quando os serviços públicos fracassam, quando as ações dos postos de saúde não são suficientes para atender a demanda, quando o DMAE é incapaz de resolver os problemas de água, quando são oferecidas atividades esportivas quando o próprio executivo busca extinguir a Secretaria Municipal de Esportes. Vale lembrar também que o Prefeito tem uma “queda” pelas redes sociais: volta e meia seus comentários tem sido objeto de debate não muito amistoso. Além disso, o Prefeito cultiva o hábito de protagonizar cenas junto as camadas mais pobres com o objetivo de criar uma imagem popular, como foi o caso amplamente divulgado de ter dançado …”despacito”. Em sua obra Muito Além do Espetáculo (Senac São Paulo, 2005), Adauto Novaes retoma a ideia seminal do pensamento do escritor Paul Valéry para quem o mundo atual era caracterizado por sua capacidade de produzir imagens e difundi-las, sejam através de ritos ou espetáculos e, numa intensificação radical sugiro arriscar, este processo atinge também a política.
Em que lugar estão os serviços?
Aqui concentra-se o início do debate promovido pelo decreto do Prefeito e que envolve sindicatos, servidores e pesquisadores. Pelo artigo 3º do decreto, os serviços públicos são prestados “nos locais públicos ou privados cedidos” em que serão instaladas repartições públicas “em unidades móveis como caminhonetes, ônibus, caminhões e tendas”. Aqui, o debate que o decreto promove é sobre a definição de uso do espaço público.
Para compreender o significado do conceito de espaço público contido no decreto do Prefeito, é necessário esclarecer o que é o espaço público. Tema comum de estudos de diversas disciplinas, Mauro Silva & Dennys Xavier em Hannah Arendt e o conceito de espaço público, artigo publicado na Revista Profanações (ano 2, n. 1, p. 216-236, jan./jun. 2015) onde os autores analisaram a contribuição da filosofa, eles concluíram que a noção de espaço público é um dos grandes temas da pensadora, definido em sua obra mestre, “A condição Humana”, onde a autora construiu uma interpretação que unifica a definição do tema do espaço público da antiguidade à modernidade.
Diz Silva & Xavier “O espaço público na referida obra tem, mormente, três aspectos. É constituído primeiramente pela aparência, pela visibilidade. É, outrossim, o mundo enquanto artefato ou produto humano. E, por fim, é o espaço da palavra e da ação, atividades condicionadas pela condição humana da pluralidade. Na confluência desses três elementos, o espaço público se constitui no espaço da liberdade (política) (p.222)”Para Arendt, a esfera pública é o espaço do comum, isto é, “de tudo o que pode ser visto e ouvido por todos”. Ser visto e ouvido por todos é condição da realidade pública e, segundo os seus intérpretes “a realidade política”. O conceito de espaço público contém a ideia de liberdade, reconhece que em qualquer lugar, todos estão livres para se manifestar. Conceitualmente, portanto, para mim, o decreto do prefeito é um erro de definição: ele não pode estabelecer limites um espaço que por natureza, deve ser de liberdade!
Ainda que o campo filosófico seja essencial ao tema da definição do espaço público, se trata também de analisar as interpretações de usos de um determinado lugar. Nesse sentido, urbanistas como Sérgio Luis Abrahão, em sua obra Espaço Público: do urbano ao político (Annablume, 2008) oferecem uma contribuição importante, pois o autor analisa a transposição dos atributos do espaço público político para os espaços públicos urbanos. Para o autor, os espaços públicos são “espaços imprescindíveis ao exercício da cidadania e a manifestação da vida pública, lugares onde deviam estar assegurados os direitos do cidadão ao uso da cidade”(p.16).
A primeira característica que salta aos olhos, na minha interpretação, a partir da visão de Abrahão, é que o Decreto 19.826 é atribui uma realização sociopolítica ao espaço público, no caso, a praça pública, identificada não pelo exercício da cidadania, mas pelo exercício da coerção política, e portanto, restritiva. O autor afirma que essa característica restritiva emergiu na ação do estado a partir dos anos 80 e corresponde a uma visão determinada de vida pública e de uso do espaço público. Abrahão afirma que a restrição do uso do espaço público começou a medida que foram transpostos atributos dos espaços públicos políticos para o espaço público urbano, o que significa a transposição das regras que os políticos impõem para a cena política, seja no plenário de uma câmara municipal ou o interior dos órgãos públicos, para o espaço público urbano, isto é, para as áreas compartilhadas pela sociedade. O problema é esse: o decreto expressa a expansão das regras do “teatro político” para o mundo mas essa transposição não é mediatizada, isto é, não se apresenta como transposição e nem suas razões. Abrahão enumera exemplos de intervenção do estado nas espaço público, especialmente na determinação dos monumentos públicos, a partir da revisão de autores norte-americanos, bem como analisa a experiência da administração pública da cidade de São Paulo durante a abertura democrática, onde também observa as propostas de interferência do estado no espaço público. Sua conclusão, ainda que no interior de uma perspectiva do desenvolvimento urbano, é no sentido de valorizar a polifonia do espaço público, lugar de vários projetos e vários papéis que podem ser assumidos pelos atores nos espaços públicos. Abrahão lembra a preocupação do arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos, de ver “ estabelecido no Brasil o espaço público da esfera política democrática”. Não é exatamente este objetivo que é negado pelo Prefeito com seu decreto, o de que, exatamente porque é apropriados pelo político, pelo prefeito, tais espaços foram excluídos de toda manifestação democrática?
O que significa uma repartição pública no espaço público?
Exceto para países muito pobres, onde pode-se de fato encontrar uma repartição pública funcionando na rua a plena luz do dia, repartições públicas são espaços de órgãos públicos com sede e lugar fixo. Isso significa que uma praça ou qualquer outro espaço público não é o lugar natural da instituição pública. Neste sentido, na contramão da organização pública, o Art 4º determina que “os agentes e servidores públicos, em exercício, nos termos deste Decreto, preservam suas características institucionais e respectivos direitos e deveremos nos termos da legislação”quando exercerem suas funções no interior do projeto em praça pública, “sendo-lhe devido o tratamento constitucional e legal imposto a todos, em suas repartições públicas”. Aonde o Prefeito nega o lugar natural da instituição pública? No parágrafo único do art. 4º, quando equipara os locais públicos à repartições públicas onde o projeto for realizado. O decreto vai além, pois coloca que exige garantias do poder político no espaço público que devem ser preservadas nos termos da lei. É o que diz o art. 5º, que determina ao público em geral e aos agentes e servidores públicos, garantias para o acesso aos locais e atividades “respeitando-se, em especial, nos espaços destinados a saúde, o silêncio e a privacidade”. Entendo por silêncio o veto a toda a manifestação pública no mesmo espaço, inclusive a dos servidores públicos. Aqui termina a análise artigo a artigo para a realização de reflexões que visam esclarecer as noções de espaço público do decreto do prefeito.
Entendo que a simples ideia de colocar freios as manifestações populares onde se realiza o projeto é contrária a definição de espaço público. A fonte é o estudo de Abrahão sobre o pensamento de Hannah Arendt, para quem, em “A Condição Humana”, a liberdade moderna não é a privada e individual, mas a liberdade pública, de participação democrática “que exige um espaço próprio: “o espaço público da palavra e da ação”(Abrahão, p. 24). Para a autora, segundo Abrahão, retirar as prerrogativas de uso do espaço público é característico de regimes totalitários que buscam induzir a um isolamento social, a um descolamento do espaço “portanto, em Arendt, a condição para haver vida pública é não haver vidas privadas de palavra e da ação”(idem), exatamente o que faz o decreto do Prefeito ao manifestar sua contrariedade às manifestações populares e do sindicato de servidores.
A defesa da liberdade no espaço público é inspirado na concepção de Arendt que recupera a ideia de espaço público presente na cidade-estado grega e na república romana, onde a vida pública era constituída de duas atividades políticas, a ação (práxis) e o discurso (conversação). A dimensão do discurso, segundo a autora, se independizou, quer dizer, viver na pólis, passou a significar decidir tudo mediante palavras e persuasão e não através da força ou violência, exatamente o contrário do que faz o Prefeito com seu decreto. Pois é pelo uso da força, pelo uso da lei, que contraria a vocação do espaço público tradicional que o Prefeito age: ”o espaço público era e devia ser “diretamente político”, garantia de humanidade pela preservação da ideia de espaço cívico”. Não é exatamente isso que é negado pela política do Prefeito, que assim, pela politica, pelo uso de suas prerrogativas enquanto Prefeito, esvazia todo o sentido político do espaço público com seu decreto?
Porque opera assim o Prefeito com seu decreto? Para mim, minha hipótese é que ele visa transformar o sentido do “espaço público” em “espaço publicitário”. O filósofo Jurgen Habermas, em sua obra Mudança Estrutural na Esfera Pública (1984) assinala que o modelo ideológico do espaço público transformou-se com o estado moderno burguês. A razão, segundo Habermas, está na necessidade do Estado em trabalhar a categoria Offentlichkeit (publicidade), traduzida como opinião pública, termo que passou a ser central no campo semântico da mídia e da propaganda eleitoral ao longo do século XIX e XX.
Poder político no espaço público
Habermas afirma a emergência de um “poder público” não apenas fundamentado em competência e uso da força, mas pelo estabelecimento de “pessoas privadas submetidas a ela enquanto destinatárias desse poder” (Abrahão, p. 26). O que está em jogo é não apenas o surgimento de diversos espaços de manifestação da opinião pública, mas também, as formas de administrar o seu controle.
Essa estratégia é a mesma, segundo Abrahão, defendida por Richard Sennet em sua obra O declínio do homem público, corresponde a uma tendência de alguns estados verificada a partir do século XIX, de estreitamento da esfera pública, do espaço público, de redução da vida social ativa, exatamente o que para mim o Prefeito objetiva fazer com seu decreto. Quer dizer, na linha dos autores citados, o que está em realização é confusão entre a associação entre espaço público como o lugar, a praça, o ágora e “espaço público” como espaço existencial de debate, que se alimenta o decreto do Prefeito.
Abrahão lembra que foi a filósofa Marilena Chauí quem, em 1998, mostrou a indissociabilidade entre democracia e espaço público e o quanto as políticas neoliberais caracterizadas pela valorização do espaço privado o corroem. O espaço da praça, que Marchezan pretende delimitar, é sempre e em primeiro lugar, um espaço social de lutas dos movimentos sociais, dos movimentos populares e dos movimentos sindicais. Ora, o decreto do Prefeito só pode ser entendido, para Chauí, como expressão autoritária neoliberal de encolhimento do espaço público. Quer dizer, o que o decreto faz, ao limitar a manifestação popular contra o Prefeito nas praças é apagar do espaço público (as praças) seu lugar de realização de uma esfera social, afetando diretamente as formas de interação de seus cidadãos com sua cidade e seus governantes.
Por esta razão, Abrahão lembra o pensamento do arquiteto Michael Brill, para quem “a manifestação da vida pública na sociedade norte-americana não se condicionava à existência de um local específico, mas sim aos interesses dessa sociedade em modelar os conceitos públicos de governo”(p.146). Não é exatamente contra esse interesse que se move o decreto do governo, de não ser afetado pelas manifestações contrárias a sua politica? Sua recusa à manifestação popular significa o esvaziamento da própria ideia de vida pública em lugares públicos, pior, considera, na discussão dos interesses públicos e privados no espaço público, o interesse privado do Prefeito como superior ao interesse público dos cidadãos. A revolução do Prefeito é fazer com que, o que outrora era discriminado pelos Códigos de Posturas, que administravam a intromissão do interesse público no privado, agora seja justamente o oposto, é administrar o interesse privado do Prefeito que substitui o interesse público e, mais uma vez, contribui para a redução da vida pública.
O que o prefeito não se dá conta é que é um erro dar a política o papel de limitar a expressão dos movimentos sociais no espaço público. Abrahão lembra o estudo do antropólogo James Holston, A cidade modernista (São Paulo, Cia das Letras, 1993), em que narra tentativas das autoridades politicas modernas em criar e legitimizar novas formas de expressão para a esfera pública. Houston apontou que diversos instrumentos são utilizados para o Estado determinar o que a sociedade pode e deve fazer no espaço público, desde ações de planejamento urbano à administração burocrática, onde “códigos legais”, como o decreto feito, são um exemplo. E essas tentativas, sempre contrariaram a natureza do espaço público.
O espaço público com espaço de marketing
Mas é no capitulo Espaço Público como peça de Marketing que Abrahão sugere o que pode estar por detrás do decreto do Prefeito: inspirados nos estudos de cultura pública urbana desenvolvidos nos Estados Unidos, como o de Shanon Zuckin, o autor aponta que uma cultura de participação politica representa riscos para aqueles que tenham o objetivo de controlar sua expressão “Embora considerasse os espaços públicos das cidades norte americanas essencialmente democráticos, acreditava serem passíveis de controle por interesses politicos e economicamente influentes”(p.153). A conclusão da autora americana é que hoje, para os políticos, o espaço público se transformou em espaço de marketing. Isso oferece uma interpretação inusitada para o decreto: o de garantir que o projeto “Prefeitura nos Bairros” seja um instrumento de propaganda eficaz do governo, porque liberto de toda a crítica da população à sua administração.
Isso pode ser justificado por uma interpretação simples. O projeto é, de longe, um projeto barato, porque usa recursos de projetos e instituições já disponíveis, dando ampla visibilidade, já que são feitos em espaços públicos comunitários. Para o Prefeito, se a hipótese for correta, na medida em que o projeto Prefeitura nos Bairros é entendido como uma peça de marketing, a critica que os servidores públicos fazem a sua gestão é um elemento que faz o investimento perder valor. Urge, portanto, higienizar e isolar o projeto do contato com seus opositores, os servidores públicos municipais. Abrahão lembra o estudo da professora e historiadora das Artes , Rosalyn Deutsche, em seu livro Evictions: arts and spactial politics (1998), identificou um discurso a respeito dos espaços públicos reivindicados pelo estado que autorizava o exercício de seu poder “Para Rosalyn Deutsche, com essa reivindicação o poder tornava-se incompatível com os valores democráticos e o espaço público era apropriado no sentido de uma estratégia que se desdobrava em um poder distintamente não-democrático e que se legitimava ao dar para o espaço social um significado próprio, e por isso, incontestável, permitindo-se assim regulamentar esse espaço público urbano”(p. 156).
Isto significa que ocupar espaços excluindo outros atores sociais é antidemocrático. Mas também significa uma sintonia perfeita com outro objetivo, o de capitalizar privadamente com a iniciativa pública. Somente a estratégia de marketing politico exige dedicação exclusiva do espaço público, porque sem oposição; a verdadeira cidadania, o exercício do espaço público democrático, convive com a diferença.
Quem tem poder sobre o espaço público
O ponto é sempre o seguinte: quem determina antecipadamente e com base no que quais os usos do espaço público que são legítimos? A resposta: a própria sociedade. Mas não é isso que acontece com o decreto, ele cria um movimento que termina por tornar tais espaços propriedade de alguém, no caso, do Prefeito, que assim promove a transferência do uso do espaço público, que é de todos, não como nos casos e exemplos relatados por Deustche, para proprietários privados, mas para a própria sua própria figura. Ao admitir o uso do espaço público apenas por seu projeto, é preciso imaginar que, se hoje o Prefeito retira das praças os servidores públicos que criticam sua gestão, o que o impede de amanhã, retirar os moradores sem teto, de realizar um verdadeiro processo de expulsão do espaço público de qualquer elemento que não considera necessário ao cenário de marketing que deseja promover? A meu ver, a presença de servidores públicos no momento do projeto Prefeitura nos Bairros é o sintoma de que as relações entre a administração e seus servidores não andam bem, justamente aqueles que tem como objetivo fomentar políticas públicas e realizar o seu projeto.
Praças são espaços familiares aos cidadãos porque sempre foram cenários do cívico e lugares de luta democrática. São locais caracterizados pela liberdade de expressão, da atividade política, são, numa expressão, arenas de atividade política: a ideia de esfera pública é justamente a de que deveriam poder conviver tanto o discurso do prefeito em defesa de seus projetos, como o discurso opositor. Ao limitar seu espaço, o Prefeito , ao contrário, produz uma perda do ideal democrático: ao contrário, como argumenta a autora, o conflito não arruína o espaço público, é condição necessária para sua existência “a ameaça à democracia surgia exatamente com os esforços em se anular o conflito: a esfera pública permanecia democrática somente na medida em que suas exclusões fossem tomadas em conta e abertas a contestação”(p. 160).
Ora, para mim o que o Prefeito faz com o decreto nada mais é do que determinar a redução do espaço politico público ao espaço de marketing de sua gestão, espaço de consumo de políticas públicas na qual o próprio Prefeito se vende como imagem: não foi assim com o episodio do Despacito, onde o Prefeito aparece para ser o personagem principal do projeto, criando assim a imagem de líder próximo da comunidade – quando entendo que seus verdadeiros interesses são os do capital? Não foi o que aconteceu, por acaso, com o episódio da extinção da segunda passagem, que imediatamente ampliou os lucros dos empresários? Ao esvaziar as praças da manifestação pública, o que o Prefeito faz é criar distância da possibilidade de fazer Porto Alegre uma cidade mais democrática. O espaço das praças agora já pode ser monitorado, controlado, segregado e os servidores públicos contrários, identificados, perseguidos e punidos. O decreto abre possibilidade da criminalização da participação pública cidadã .
Um sonho de exclusão
Para mim, o Prefeito tem um desejo: transformar as praças em seu veículo de marketing, estabelecer com os bairros e suas populações um movimento passivo, porque populista, pela oferta de serviços, onde as únicas arenas de escolha ativa são os benefícios de serviços como corte de cabelo, testes de sangue, tirando toda a vida da dimensão do espaço público. A praça do Prefeito deixa de ser espaço de lutas para ser uma combinação de parque de diversões com feira e estúdio de cinema. O decreto é perverso por que, ao não permitir atividades politicas espontâneas nas praças, esquece que esta é uma atividade normal das cidades, revelando que os espaços públicos passaram a ser cuidadosamente controlados e a participação pública, reduzida.
Agora, diferente das intervenções realizadas nos espaços públicos que visavam proteger os cidadãos de elementos ameaçadores, como usuários de drogas, sem teto, agora tudo se inverteu: se trata de proteger o Prefeito dos servidores, vistos como categoria ameaçadora a sua gestão. Ora, é essencial a definição de espaço público de que ele é um espaço aberto para o público em geral, sem restrições, que não admite o controle por indivíduos ou organizações. Se o prefeito restringe o acesso a um espaço público, ele está…privatizando este espaço!. Em nome de quem? Para mim a resposta é: dos interesses do próprio prefeito.
Ao contrário, o poder público tem a responsabilidade de manter os espaços públicos para o gozo público, nunca para o gozo do governante de plantão. Abrahão lembra a posição do holandês Hertzeberger, para quem “os espaços públicos deveriam ser administrados diretamente pela comunidade, de forma que a participação de cada membro contribuísse com a criação de um ambiente com o qual pudessem se relacionar e se identificar”(p.162). Para ele “os regulamentos impessoais, objetivos, que contemplam um controle total de cima para baixo, criam condições para que o sistema repressivo da ordem nos tornasse locatários, em ver de co-proprietários, subordinados, ao invés de participantes, conduzindo-nos a alienação diante de nosso ambiente, e, desta forma, dificultando o desenvolvimento de condições que poderiam resultar num ambiente mais hospitaleiro”(p.163).