Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar buscar criar a compreensão do lido; (…) É que ensinar a ler é engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão.
Paulo Freire, 2001
Em tempos de repressão e cassação de nossos direitos democráticos, não posso me furtar a iniciar esse texto sem falar de Paulo Freire. Educar é um ato político e como tal deve ser encarado. A apropriação da leitura da palavra se faz necessária para apoderar o sujeito, para que faça melhor a leitura do (seu) mundo.
Dito isto, invoco também Antônio Cândido que ao ver a literatura como direito básico a que todos temos, direito de conhecer e usufruir de todos os bens culturais historicamente construídos pelo homem, faz com que, por exemplo, deixemos de ver o ensino dos textos de Machado de Assis como um dever da escola e passamos a vê-lo como um direito do aluno. Mas, para isso, temos que pensar o ensino da leitura e da literatura em outras bases, não como a escola tradicional vem fazendo.
Queria ilustrar, o poder da literatura sobre nós, sobre os alunos, contando duas pequenas historinhas. A primeira ocorreu em 2002 e eu tinha uma turma de 4º ano, com alunos multirrepetentes e havia ganho uma ida ao cinema para ver o filme Harry Potter. Para que não fosse apenas um passeio, iniciei a leitura do livro para a turma em capítulos. Aqueles alunos tão irrequietos, que a tudo protestavam, naqueles momentos faziam completo silêncio e pareciam estar suspensos em outro tempo e espaço. Durante a sessão do cinema, um aluno em especial me chamou a atenção. Ele nem piscava, parecia estar dentro do filme e lá pelas tantas me olhou e disse “eu gostaria de descobrir que sou Harry Potter”. Pois bem, aquele aluno, se sentia o próprio personagem. Estabeleceu uma ponte entre sua vida (rejeitado pelos familiares, com marcas de fracasso e abandono) com a do Harry.
A outra história é a de uma turma de crianças de 2º ano, em 2003. A biblioteca da escola estava fechada. Não havia bibliotecária. Mas eu acreditava (e acredito) que a ida aquele espaço era de fundamental importância. Pois bem, uma vez por semana lá ia eu para lá. Para minha surpresa, eles não se encantavam com os livros e a leitura. Usavam o espaço para brincar. Corriam entre as prateleiras, subiam na escada que dava acesso aos livros mais altos, brincavam de vender livros sem ao menos abri-los, faziam estrada de livros para fingir serem pistas de corrida… até que um dia, uma das meninas que há pouco aprendera a ler, sentou-se no tapete, pegou um livro e iniciou a leitura para quem quisesse ouvir, imediatamente várias crianças se colocaram ao seu redor. Nunca mais nossa ida à biblioteca se furtou do encontro literário com o livro. As outras crianças queriam também serem capazes de ler, quem ainda não conseguia sozinho, sentava com um colega que servia de ledor para ele. É claro que se somou a isso o trabalho com o livro que eu fazia, como professora, na sala de aula. Mas destaco aqui a importância da vivência do livro como brinquedo, da significação da biblioteca como espaço de aprendizagem e encontro com a leitura e da construção do desejo em aprender a ler.
Outros dois exemplos, agora literários, que gostaria de evocar aqui é a do livro A bibliotecária de Auschwitz de Antonio Iturbe (baseada numa história real) em que, num galpão que reunia as crianças presas, algumas pessoas liam ou narravam trechos de livros na esperança de fazer com que as crianças por alguns minutos esqueçam do lugar em que estão. E em O menino dos fantoches de Varsóvia de Eva Weaver, o menino que conta historinhas com fantoches ao se questionar sobre a relevância de se fazer o que ele faz em meio ao terror da guerra tem como resposta:
Meu caro rapaz, se as pessoas como você não existissem, os alemães já teriam nos destruído nos lugares que realmente importam. – Ele apontou para seu peito, seu coração. -Eles já teriam entorpecido nossos corações, assassinado nosso espírito, roubado nossas almas. Seus fantoches trazem uma fagulha, uma luz que nos mantêm vivos. Isso é muito precioso, Mika. É tudo o que podemos fazer nesse momento. (p.82-3)
Assim, vejo a literatura como algo fantástico, capaz de nos transportar a outros lugares, nos ensinar a compreender melhor nosso mundo e nossos sentimentos. E que a leitura dá um poder a quem aprende que é imprescindível aos nossos alunos no mundo de hoje. É dever da escola e um direito de nossos alunos. Sempre penso que por mais violento que seja o mundo em que vivem (e trabalho com alunos que sobrevivem em meio às guerras do tráfico e abandono familiar) a escola pode ser um outro lugar e oferecer, através da literatura e do poder da leitura, um outro patamar de vida para esses alunos.
Maria Teresa Andruetto, 2012 nos diz que a experiência da leitura (como a da escrita) é um dos últimos redutos de liberdade que o homem tem. (p. 135) e quando a gente se pergunta para que escrever, para que ler, para que contar, para que escolher um bom livro em meio à fome e às calamidades? (p.24) Ela responde:
(…) Escrever para que o escrito seja abrigo, espera, escuta do outro. Porque a literatura, mesmo assim, é essa metáfora da vida que continua reunindo quem fala e quem escuta num espaço comum, para participar de um mistério, para fazer que nasça uma história que pelo menos por um momento nos cure de palavra, recolha nossos pedaços, junte nossas partes dispersas, transpasse nossas zonas mais inóspitas para nos dizer que no escuro também está a luz, para mostrarmos que tudo no mundo, até o mais miserável, tem seu brilho.
Como ações de fomento à leitura penso ser importante a qualificação do professor – como sujeito que lê e tendo conhecimento sobre leitura literária (literatura e competências leitoras – indico algumas leituras no final deste texto para quem ficou interessado). Destaco a formação do PNAIC/MEC com a introdução da leitura deleite que fez com que os professores lessem para seus alunos (ainda que precisemos também de um trabalho sistemático com o texto para que se compreenda cada vez mais e melhor) e das caixas de livros do PNBE que fez com que mais livros (de qualidade) chegassem às escolas.
E, em Porto Alegre não posso deixar de falar do Programa de leitura Adote um escritor – uma parceira da SMED/PoA e Câmara do Livro, iniciada em 2002 que prevê a ‘adoção’ de um autor por uma escola. A Câmara do livro entra em contato com autores que gostariam de participar do programa (já participaram mais de 200 escritores ao longo desses anos) e a SMED fornece verba para a aquisição dos livros e transporte para a Feira do Livro. Ficando a cargo das escolas desenvolver um trabalho de leitura com os livros do autor adotado (a escolha do autor é feita por sorteio). Ao final de um período, o autor visita a escola.
Para mim, não há acontecimento mais importante que esse: o de proporcionar o encontro entre um escritor e seus leitores. As crianças se preparam durante meses para receber, não um jogador de futebol ou artista, mas um escritor! Acredito no impacto positivo que isso causa na vida de cada criança e adolescente participante. Sem contar que é uma forma de fazer com que os professores, muitas vezes presos aos seus conteúdos formais possam se abrir para a inclusão da literatura na sala de aula e na ocupação da escola, principalmente da biblioteca tornando-a viva! Viva de leitura, de histórias, de vidas.
Meu trabalho com literatura começou com minha formação pessoal, filha de professora tendo a valorização do livro e tendo uma professora de primeira série que me ensinou a ler contando as histórias de Monteiro Lobato (eu queria aprender a ler para ser capaz de ler eu mesma aquelas histórias que estavam naqueles livros “enormes” que ela guardava na sala). Mas com meus alunos, teve maior impacto quando recebi uma turma de alunos multirepetentes, com dificuldade de aprendizagem que protestavam contra as aprendizagens formais em que encontrei na literatura o caminho para estabelecer pontes com o conhecimento. Foi criando formas diferentes de trabalho com o texto literário que fui capaz de sensibilizar aqueles alunos e ensiná-los.
O Adote faz com que a escola consiga se ver mobilizada em torno de um tema – articulando diferentes áreas do conhecimento (artes, literatura, história, ciências…); a escola se “vista” de literatura (paredes, mesas, biblioteca …) e que os professores invistam na qualificação de seu trabalho com a literatura. Posso ainda citar o PLA (Porto Leitura Alegre) – evento que permite que professores relatem seus trabalhos feitos com o Adote, investindo também na formação dos professores. E, temos ainda o Autor no Palco que promove a ida das crianças para a feira do livro. Infelizmente, perdemos o projeto Quintanares, que garantia dinheiro para os alunos para aquisição de livros na Feira do Livro (mediante a inscrição de professores que apresentassem bons projetos de leitura com suas turmas). As crianças das classes populares ganham em vir à Feira do Livro, usufruindo do espaço cultural mas carecem de terem poder aquisitivo de compra de livros também. O Quintanares oferecia uma oportunidade única às crianças.
Ao longo desses anos tenho construído inúmeros roteiros de leitura (atividades envolvendo um livro literário) e aproveitado os escritores que têm sido adotados pelas escolas em que trabalho. Acredito ser a literatura um caminho interessante para possibilitar aos alunos a proficiência em leitura e maior compreensão e posicionamento crítico sobre o mundo em que vivem. E é dever de todos defender efetivas políticas públicas de leitura na escola. Já tivemos muitas iniciativas de sucesso que estão sendo desmontadas. Precisamos lutar. Não ao fim do ADOTE!
Referências
ANDRUETTO, Maria Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
FREIRE, Paulo. Carta de Paulo Freire aos professores. In: Revista Estudos Avançados, volume 15, nº 42, São Paulo, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142001000200013 <
Sugestões de leitura
BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
BRITTO, Luiz Percival, Ao revés do avesso. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2015.
COLOMER, Teresa. Andar entre os livros: a leitura litrária na escola. São Paulo: Global, 2007.
COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. São Paulo: Global, 2003.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2ed. São Paulo: Editora Contexto, 2014.
GONÇALVES, Sílvia N. Brincriando com Dilan Camargo. Revista SMED {CONHECER}, Porto Alegre, v. 4, dez. 2014. Disponivel em: http://websmed.portoalegre.rs.gov.br/escolas/conhecer/revistas/04_2014.pdf
GONÇALVES, Silvia. N.; NÖRNBERG, M. Era uma vez… uma literatura para brincar. Revista Textura (ULBRA), Canoas, v. 17, n. 35. 2015. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/txra/article/view/1610/1259
GONÇALVES, Silvia N.; “Uma dica pra ti… quando a sora fizer brincadeiras tu não vai só brincar… tu vai aprender brincando…”: um estudo sobre o lúdico em roteiros de leitura a partir da prática pedagógica com crianças e professora Orientadora: Profª. Drª. Marta Nörnberg. Pelotas, 2017. 272f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação – Faculdade de Educação. Universidade Federal de Pelotas. http://wp.ufpel.edu.br/obeducpacto/files/2015/08/Dissertacao-Silvia-N-Goncalves-2017-3.pdf
PETIT, Michele. Os jovens e a leitura. São Paulo: Editora 34 Ltda, 2009.
PETIT, Michele. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. São Paulo: Editora 34 Ltda, 2013.
SOUZA, Renata Junqueira (org) Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas: Mercado de letras, 2010.